
A soprano brasileira Gabriella Di Laccio não foi homenageada no Palácio de Buckingham apenas por sua voz. No início de outubro, a cantora lírica e “artivista” recebeu das mãos do Príncipe William a medalha de Membro da Ordem do Império Britânico — uma das maiores honrarias concedidas pelo Rei Charles III — por seu trabalho como líder da Donne Foundation.
A instituição, que ela comanda, é dedicada a mapear e promover o trabalho de compositoras mulheres, tanto do passado quanto do presente, já tendo catalogado mais de 5 mil artistas de 115 países. Gabriella afirma que, como artista, sentiu-se na obrigação de “abrir espaço para compositoras” em seu trabalho, indo além do ato de cantar.
O prêmio, entregue pelo Príncipe William, destaca o reconhecimento de seus “serviços à música e à igualdade de gênero”. A soprano expressa a magnitude da honraria: “Receber essa medalha já é algo muito especial para um inglês, então imagine para mim, que sou brasileira, mulher e artista.” Para ela, o reconhecimento reforça tanto um “grande senso de responsabilidade” quanto o “incentivo para continuar o meu trabalho.”

Como a cantora fez história para as mulheres na música
Há mais de 20 anos baseada em Londres, onde construiu uma carreira premiada como soprano em concertos solo, Gabriella decidiu fundar a Donne após encontrar uma enciclopédia listando seis mil compositoras esquecidas pela história. “Senti vergonha de não conhecer nenhuma delas. Tive aulas, concertos, formação em grandes escolas — e praticamente não estudei música de mulheres”, lembra. “Isso me deu vontade de agir.”
Em 2018, no Dia Internacional da Mulher, ela criou um site com biografias, entrevistas e obras de quatro mil compositoras. “Queria que fosse algo bonito, fácil de engajar e que qualquer pessoa que não sabia que existiam compositoras mulheres pudesse entrar no site e descobrir um pouco”, conta. “Não havia grandes planos, mas o impacto foi imediato.”
No site, também publicou um infográfico analisando as temporadas das 15 maiores orquestras do mundo, que revelava que apenas 2,3% das obras eram de mulheres. “O dado quebrou a bolha. A partir daí, compositoras do mundo inteiro começaram a me procurar.”

Atualmente, a Donne Foundation se destaca como o maior e mais dinâmico banco de dados de compositoras do mundo, cobrindo gêneros que vão da música clássica a trilhas sonoras. “Fico feliz pelo reconhecimento que temos alcançado ao redor do mundo — inclusive do Oscar, que hoje consulta nossa base para incluir músicas compostas por mulheres em filmes,” afirma Gabriella.
Em 2024, a iniciativa conquistou um marco no Guinness World Records com um concerto de 26 horas ininterruptas, transmitido pelo YouTube, que apresentou exclusivamente canções de compositoras. O evento, realizado na Embaixada do Brasil, em Londres, contou com a participação de músicos voluntários de diversas partes do planeta.
Da infância no Brasil até a carreira na Inglaterra
Nascida em Canoas (RS), Gabriella descobriu o canto ainda criança, no coral da escola. “Nasci com essa paixão. Meus pais não eram músicos, mas ouviam música clássica em casa”, recorda. “Eu me sensibilizava com aquelas notas agudas e graves que pareciam tocar o corpo inteiro.”
Sem recursos, estudou piano em um teclado de papelão improvisado pela professora até conseguir um instrumento usado. “Minha família fez muitos sacrifícios para alimentar meu sonho.” Aos 18 anos, depois de ingressar na graduação de arquitetura, uma apresentação na formatura da irmã mudaria tudo. “Cantei sozinha pela primeira vez, e vi como emocionei as pessoas. Voltei para casa e disse aos meus pais que iria largar a arquitetura para estudar canto.”

Mudou-se para Curitiba para estudar com a professora Neyde Thomas, que fez carreira internacional no Metropolitan Opera, em Nova York, e no Deutsche Oper, em Berlim. “Na época, pensei que, se queria seguir essa carreira, teria que ter aulas com a melhor professora do Brasil e estudar ao máximo.” Pouco depois, se mudou sozinha para Londres aos 23 anos, após ganhar uma bolsa do governo do Paraná para o Royal College of Music. “Tinha chegado até onde podia dentro da minha realidade como artista no Brasil, mas sabia que ainda havia muito a aprender.”
A partir dali, iniciou uma carreira como soprano solista, conquistando prêmios, apresentando-se em casas de ópera pela Europa e se destacando por incorporar repertórios latino-americanos a suas performances — uma escolha que se tornaria sua assinatura artística. “No começo, tentei me encaixar na caixa europeia do que era esperado de uma cantora clássica, mas percebi que minha força era justamente ser brasileira.”
Hoje, além de seguir com a carreira de soprano e liderar a Donne Foundation, Gabriella se dedica a um doutorado na York St John University, em Londres. “Investigo como o ativismo performático, a transparência de dados e a ação comunitária podem transformar instituições musicais e promover representatividade”, conta. “Essas três coisas juntas podem mudar a indústria e se relacionam muito com o meu trabalho. É quase como um relato da minha vida dentro do laboratório.”
Com informações de Forbes


